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Segundo isso, as penas impostas jamais seriam eternas?

Consulta o bom senso, a razão e pergunta se uma condenação perpétua, em conseqüência de alguns momentos de erro, não seria a negação da bondade de Deus. O que é, com efeito, a duração da vida, mesmo que fosse de cem anos, em relação à eternidade? Eternidade! Compreende bem essa palavra? Sofrimento, tortura sem fim e sem esperança, apenas por algumas faltas! Não repugna ao próprio critério semelhante pensamento? Que os antigos tivessem visto no Senhor do Universo um Deus terrível, invejoso e vingativo, compreende-se; na sua ignorância emprestaram à divindade as paixões dos homens. Mas não é esse o Deus dos cristãos, que coloca o amor, a caridade, a misericórdia, o esquecimento das ofensas no plano das primeiras virtudes: poderia ele mesmo não ter as qualidades que exige como um dever? Não há contradição em se lhe atribuir a bondade infinita e a vingança infinita? Diz que antes de tudo ele é justo e que o homem não compreende a sua justiça. Mas a justiça não exclui a bondade e Deus não seria bom se destinasse às penas horríveis e perpétuas a maioria de suas criaturas. Poderia fazer da justiça uma obrigação para seus filhos, se não lhes desse os meios de a compreender? Aliás, não é sublime a justiça unida à bondade, que faz a duração das penas depender dos esforços do culpado para se melhorar? Nisto se encontra a verdade do preceito: “A cada um segundo as suas obras”. (Santo Agostinho)

Empenhem-se por todos os meios que estiver ao alcance no combate, no aniquilamento da ideia da eternidade das penas, pensamento blasfemo da justiça e da bondade de Deus, a mais fecunda fonte da incredulidade, do materialismo e da indiferença que invadiram as massas, desde que a sua inteligência começou a se desenvolver. O Espírito prestes a se esclarecer, ou ainda em vias de o fazer, bem logo compreendeu a monstruosa injustiça. Sua razão a repele e então raramente deixa de confundir numa mesma condenação a pena que o revolta e o Deus a que é atribuída. Disso decorrem os males sem conta que recaíram sobre vocês e para os quais viemos trazer o remédio. A tarefa que nos referimos, será tanto mais fácil quanto as autoridades em que se apoiam os defensores dessa crença, evitaram de se pronunciar de modo formal. Nem os concílios, nem os Pais da Igreja decidiram de maneira absoluta essa grave questão. Se de acordo com os próprios evangelistas, tornando-se ao pé da letra as suas palavras alegóricas, o Cristo ameaçou os culpados com o fogo que não se extingue, com fogo eterno, entretanto, nada existe nessas palavras que provem tê-los condenado eternamente. Pobres ovelhas desgarradas, saibam ver que o Bom Pastor se aproxima e que, longe de querer os banir para sempre da sua presença, vem ao encontro, para os reconduzir ao redil. Filhos pródigos, deixem o exílio voluntário. Voltem para a morada paterna: o Pai abre os braços e está sempre pronto para festejar o retorno à família. (Lamennais)

Guerras de palavras! Guerras de palavras! Não tem feito verter bastante sangue? Será ainda necessário reacender as fogueiras? Discutem-se as expressões: eternidade das penas, eternidade dos castigos. Não sabem então que aquilo que hoje entendem por eternidade os antigos não entendiam da mesma maneira? Que o teólogo consulte as fontes e como todos nós, descobrirá que o texto hebraico não dava à palavra o mesmo sentido que os gregos, os latinos e os modernos traduziram por penas sem fim, irremissíveis. A eternidade dos castigos corresponde à eternidade do mal. Sim, enquanto existir o mal entre o homens, subsistirão os castigos; é em sentido relativo que se devem interpretar os textos sagrados. A eternidade das penas é, portanto, relativa e não absoluta. Dia virá em que todos os homens se revestirão pelo arrependimento da roupagem da inocência, e nesse dia não haverá mais gemidos ou ranger de dentes. A  razão dos homens é limitada, isso é verdade, mas, tal qual é, representa um presente de Deus e com a ajuda da razão não haverá um só homem de boa fé que compreenda de outra maneira a eternidade dos castigos. A eternidade dos castigos! Como! Teríamos então de admitir que o mal fosse eterno. Mas só Deus é eterno e não poderia ter criado o mal eterno, pois, se assim não fosse, teríamos de destituí-lo do mais belo dos seus atributos: o soberano poder, porque deixa de ser soberanamente poderoso o que pode criar um demento destruidor de suas próprias obras. Humanidade, Humanidade! Não mergulhes mais o teu sombrio olhar nas profundezas da Terra, buscando os castigos. Chora, espera, expia e te refugia no pensamento de um Deus infinitamente bom, absolutamente poderoso e essencialmente justo. (Platão)

Gravitar para a unidade divina, esse é o objetivo da Humanidade. Para atingi-lo, três coisas lhe são necessárias: a justiça, o amor e a ciência; três coisas lhe são opostas e contrárias: a ignorância, o ódio e a injustiça. Pois bem, em verdade digo que mentem a esses princípios fundamentais ao comprometer a ideia de Deus com o exagero de sua severidade, e duplamente a comprometem, deixando penetrar no Espírito da criatura o pensamento de que ela possui mais clemência, mansuetude, amor e verdadeira justiça do que costumam atribuir ao Ser Infinito. Destruam mesmo a idéia de inferno, tornando-a ridícula e inacessível às crenças terrenas, como o é para os seus corações o horrendo espetáculo das execuções, das fogueiras e das torturas da Idade Média. Mas como? É quando a era das represálias cegas já foi superada pelas legislações humanas que esperam mantê-la numa forma ideal? Oh!, crede-me, irmãos em Deus e em Jesus Cristo, crede-me ou resignem-se a deixar perecer nas mãos todos os dogmas, para permitir a sua alteração, ou, então, incremente-os, abrindo-os aos benéficos eflúvios que os bons Espíritos derramam neste momento sobre eles. A idéia do inferno com suas fornalhas ardentes, com suas caldeiras ferventes, pôde ser tolerada ou admissível num século mitológico; mas no século dezenove não passa de vão fantasma que só serve para amedrontar as criancinhas, e no qual essas mesmas já não acreditam quando se tornam um pouco maiores. Persistindo nessa mitologia apavorante, engendrais a incredulidade, origem de toda a desorganização social; eis porque tremo ao ver toda uma ordem social abalada e a ruir sobre as próprias bases por falta de sanção penal. Homens de fé ardente e viva, vanguardeiros do dia da luz, ao trabalho, pois! Não para manter velhas fábulas atualmente desacreditadas, mas para reavivar e revitalizar a verdadeira sanção penal sob formas que correspondam aos vossos costumes, aos vossos sentimentos e às luzes da vossa época.

Quem é, com efeito, o culpado? Aquele que por um extravio, por um falso impulso da alma se distancia do objetivo da Criação, que consiste no culto harmonioso do belo e do bem idealizado pelo arquétipo humano, pelo homem-deus, por Jesus Cristo.

Qual é o castigo? A conseqüência natural decorrente desse falso impulso; uma quantidade de dores necessárias para fazê-lo aborrecer-se da sua deformação, pela prova do sofrimento. O castigo é o aguilhão que excita a alma pela amargura a voltar-se sobre si mesma, a retornar ao caminho da salvação. O objetivo do castigo não é outro senão a reabilitação, a redenção. Querer que o castigo seja eterno, por uma falta que não é eterna, é negar toda a razão de ser.

Em verdade digo, cessem, cessem de pôr em paralelo, na eternidade, o Bem, a essência do Criador, com o Mal, essência da criatura: isso seria criar uma penalidade injustificável. Afirmem, ao contrário, o abrandamento gradual dos castigos e das penas pelas transmigrações e consagrareis, pela razão ligada ao sentimento, a unidade divina. (Paulo, o apóstolo)

Comentário de Kardec: Deseja-se incitar o homem ao bem e desviá-lo do mal pelo engodo das recompensas e o temor dos castigos, mas se esses castigos são apresentados de maneira que a razão repele, não terão sobre ele nenhuma influência. Longe disso, ele rejeitará tudo: a forma e o fundo. Que se lhe apresente, pelo contrário, o futuro de uma forma lógica e ele não o recusará. O Espiritismo lhe dá essa explicação.

A doutrina da eternidade das penas, no seu sentido absoluto, faz do ser supremo um Deus implacável. Seria lógico dizer-se que um soberano é muito bom muito benevolente, muito indulgente, que não deseja senão a felicidade dos que o rodeiam, mas que ao mesmo tempo é invejoso, vingativo, de um rigor inflexível e que pune com o suplicio máximo três quartas partes de seus súditos por uma ofensa ou uma infração às suas leis, ainda mesmo aqueles que faliram por não as conhecer? Não seria isso uma contradição? Pois bem. Deus pode ser menos do que o seria um homem?

Outra contradição se apresenta neste caso. Desde que Deus tudo sabe, sabia então, ao criar uma alma, que ela teria de falir; ela estava desde a formação destinada à infelicidade eterna: isto é possível, é racional? Com a doutrina das penas relativas, tudo se justifica. Deus sabia, sem dúvida, que ela teria de falir, mas lhe dá os meios de se esclarecer por sua própria experiência e pelas suas próprias faltas. É necessário que ela expie os seus erros para melhor se firmar no bem, mas a porta da esperança jamais lhe será fechada e Deus faz depender o momento da sua libertação dos esforços que ela fizer para o atingir. Eis o que todos podem compreender, o que a lógica mais meticulosa pode admitir. Se as penas futuras tivessem sido apresentadas dessa maneira, haveria muito menos céticos.

A palavra eterna é quase sempre empregada na linguagem comum em sentido figurado, para designar uma coisa de longa duração e da qual não se prevê o termo, embora se saiba muito bem que esse termo existe. Dizemos, por exemplo, os gelos eternos das altas montanhas, dos pólos, embora saibamos, de um lado, que o mundo físico pode ter um fim, e de outra parte, que o estado dessas regiões pode modificar-se pelo deslocamento normal do eixo da Terra ou por um cataclismo. A palavra eterno, neste caso, não quer dizer duração infinita. Quando sofremos uma longa doença, dizemos que o nosso mal é eterno. Que há, pois, para admirar, se os Espíritos que sofrem desde muitos anos, desde séculos, e até mesmo de milhares de anos, também digam assim? Não nos esqueçamos, sobretudo, de que a sua inferioridade não lhes permitindo ver o termo da rota, eles crêem sofrer para sempre, o que é para eles uma punição.

De resto, a doutrina do fogo material, das fornalhas e das torturas emprestadas ao Tártaro do paganismo, está hoje completamente abandonada pela alta Teologia. Apenas nas escolas esses apavorantes quadros alegóricos são ainda apresentados como verdades positivas por alguns homens mais zelosos do que esclarecidos. E isso muito erroneamente, pois as imaginações jovens, uma vez passado o terror, poderão aumentar o número dos incrédulos. A Teologia reconhece hoje que a palavra fogo é empregada em sentido figurado, devendo ser entendida como fogo moral. (Ver item 974.) Os que, como nós, acompanharam as peripécias da vida e dos sofrimentos do além-túmulo através das comunicações espíritas puderam convencer-se de que, por não terem nada de material, elas não são menos pungentes. A respeito mesmo da sua duração, alguns teólogos começam a admiti-las no sentido restritivo que indicamos acima e pensam que, de fato, a palavra eterno pode referir-se às penas em si mesmas, como conseqüência de uma lei imutável e não na sua aplicação a cada indivíduo. No dia em que a religião admitir essa interpretação, bem como outras que são igualmente a conseqüência do progresso das luzes, reconduzirá ao seu seio muitas ovelhas desgarradas.